domingo, 29 de janeiro de 2012

A complexidade da cultura chinesa

Tenho feito uma longa pausa em relação a este blog, principalmente devido ao facto de que as minhas peripécias pessoais nestes três anos me deixaram sem qualquer inspiração para encontrar pontos de interesse para expor aqui. Por outro lado, o facto de já estar pela China há dez anos e meio (o recente Ano do Dragão celebtrou um ciclo de doze anos em que já estudo a China), fez aperceber-me que o que antes era peculiar e extraordinário aos olhos de um europeu, tornou-se algo banal e comum para mim. Apenas consigo compreender que tais assuntos não são tão comuns quando alguns amigos me vêm procurar com algumas dúvidas e ainda ficam mais abismados com a minha explicação. Por exemplo, quando há uns meses um amigo me fez mostrar as dificuldades em compreender e fazer-se compreender pelas chinesas, aconselhei-o a ler a Arte da Guerra de Sun Zi. Ele leu a obra sem ter adquirido qualquer clarificação da dúvida em mãos, mas eu tenho utilizado as ideias de tal livro para lidar com tais situações e tem-se revelado bastante frutuosa.

Por isso recentemente tenho sido aconselhado a escrever um livro onde poderia condensar toda a minha experiência sobre a China, mas se bem que tenho de confessar que tal projecto já me pareceu bastante aliciante, tenho concluido que tal livro não iria acrescentar nada de novo à já longa lista de livros gerais escritos sobre a China, se me mantivesse fiel a ideias gerais sobre a China. Por outro lado, se tentasse algo mais profundo - provavelmente reunindo a contestação dos chineses por tentar compreender um povo tão complexo - teria de divagar entre as camadas culturais da China que remontam não a pouco mais de 50 anos atrás com a revolução comunista, mas a milénios de diversas influências e escolas. Confucionismo, taoismo, budismo, marxismo, outras escolas menores e mesmo outras influências estrangeiras em menor escala tais como cristianismo, democracia (ocidental), tudo ajuda a explicar o que é um chinês dos nossos dias. Em muitos aspectos, ao nível da mentalidade, o que os portugueses descreviam sobre a China há quinhentos anos atrás não é muito diferente de hoje. Tal como já li livros sobre a história portuguesa de há quinhentos anos atrás e, apesar da mudança de trajos, vocabulário e tecnologia, ao nível da mentalidade muitos pontos são semelhantes.

Por outro lado, a história recente da China nos últimos 150 anos fez com que cada geração tivesse expectativas diferentes da anterior, e um modo completamente diferente de ver o mundo. Cada geração passou por pelo menos um movimento marcante da história da China, e tal obviamente teve enormes consequências no 'mundo' que cada chinês estava habituado a viver. Por isso neste momento explicar a China torna-se uma das tarefas mais complexas que se possa imaginar: temos por um lado séculos de escolas filosóficas por vezes contraditórias e ao mesmo tempo complementares, por outro lado eventos marcantes que tentam cortar com o passado e criar um novo futuro, por outro a integração da China na comunidade mundial, e com o risco de se tornar uma superpotência. Tal processo obviamente não pode ser totalmente harmonioso, e por isso se apenas considerarmos a nova geração, encontramos indivíduos que compartilham com as tradições milenares da China, outros que se identificam mais com o ocidente, outros que tentam harmonizar ambos os mundos. Se adicionarmos as restantes gerações, temos grandes disparidades geracionais, especialmente porque tradicionalmente se deve respeito às gerações mais velhas e quando se encontram as três gerações, há uma disparidade cada vez maior ao lado do respeito tradicional que é devido.

Mesmo a teorética para explicar a China se torna um desafio, pois o modo de pensar de um chinês é bastante diferente de um ocidental, e por conseguinte explicar a mentalidade chinesa com base na nossa própria cultura conclui-se por meras descrições em vez da compreensão, tal como aliás acontece no caso oposto. Por exemplo, ao frequente debate sobre as constantes violações dos direitos humanos por parte da China, a China contrapõe que tem parâmetros diferentes: enquanto que no ocidente o indivíduo é o elemento fulcral dos direitos, e por conseguinte deve ser protegido em relação à comunidade (já um professor dizia que a democracia é o regime das minorias, já que tende a proteger as indiossincracias das minorias em relação aos grupos dominantes), na China a comunidade (com base na ideia confucionista da transplantação do respeito pela família e pelos pais para o respeito pelo estado - sendo o estado o pai da nação) é o elemento fulcral, e a vontade do indivíduo deve ser sacrificada em relação à vontade da comunidade.

Dados todos estes pontos, já teria escrito um livro sobre o que aprendi sobre a China, mas tal livro seria composto de apenas páginas em branco, porque dada tal complexidade seria difícil encontrar um princípio, um meio e uma conclusão.

P.S. - Este artigo NÃO foi escrito de acordo com o acordo ortográfico em vigor.

sábado, 9 de maio de 2009

Livros de Consulta (Parte I)

Seguem-se alguns comentários sobre alguns pequenos livros de consulta sobre aspectos particulares da China, com informações bastante interessantes.

1. GU Xijia (顾希佳), Traditional Chinese Festivals (中国传统节日趣谈). Guangdong Education Publishing House, Guangzhou: 2007, 1ª ed. 213 pág., Col. Chinese Classic Cultural Stories Series, versão bilíngue (chinês-inglês).

Apresenta uma lista interessante sobre os festivais chineses, alguns, segundo o autor, já algo esquecidos pelos próprios chineses. Em termos de estrutura, apresenta-se bastante completo, começando com os festivais nacionais por data (segundo o calendário lunar) e no os festivais locais. Além das gravuras que povoam o livro, os festivais são bem explicados em termos de costumes nacionais e locais, origem e narração das lendas e provável origem histórica.

Como pontos negativos, aponto a relação algo solta entre alguns parágrafos (dificultado ainda mais pelo facto que a versão bilíngue apresenta-se por divisão em parágrafos), e o facto de não apontar as datas aproximadas dos festivais de acordo com o calendário solar. Por exemplo, o "Hungry-Ghost Festival" festeja-se no dia 15 do sétimo mês lunar, o que nos obriga a consultar um calendário com ambos os anos (lunar e solar) para termos ideia da data.



2. JIN Nailu (金乃逯), 中国文化释疑. A Hundred Questions on the Chinese Culture. Beijing Language and Culture University Press: 2005, 2ª ed., 279 pág., versão bilíngue (chinês-inglês).

Livro que tenta cobrir os vários aspectos da cultura chinesa, estruturado com base em perguntas e respostas e por temas. Temas abordados: Idioma e caracteres; Pensadores clássicos; Religião; Drama e música; Pintura, caligrafia e arte; Medicina chinesa; Lendas folclóricas; Costumes; Nomes e sistemas; Livros clássicos; Arquitectura clássica; Formas antigas de cumprimentar; Tecnologia antiga; Miscelânea (moeda, expressões, alimentação).

É um livro interessante para ter uma ideia sobre aspectos específicos da cultura chinesa, e para encontrar outras interpretações para (pre)conceitos bastante batidos e assimilados. Por exemplo, a interpretação do termo 中国, ou Império do Meio indicam dever-se ao local onde a nacionalidade Han habitava, isto é, na bacia do Rio Amarelo e rodeada de outros estados. Era, portanto, o estado que se encontrava entre outros. Uma interpretação ainda mais antiga explica o caracter 中 como representando uma bandeira. Os governates dos estados convocavam reuniões sob um estandarte e por isso 中 ficou como identificador do estado. Assim, conclui o autor, "(...) we can see that it is not correct to think that China has always regarded itself as the "central kingdom" of the world." (pág. 164).

Livro aconselhado para consulta.



3. He Changling (何长领) (Comp.), History of the Great Wall. 长城. China Dabai Kejin Shu Publishing House: 2007, 1ª ed., 204 pág., Col. History of Chinese Civilization, versão bilíngue (chinês-inglês).

Se bem que não seja propriamente um livro de consulta, a colecção em si é uma referência para consulta. Eu tenho neste momento dois volumes (livros 3. e 4.), e apresentam de forma sucinta a evolução e pontos altos sobre um determinado tema.

Neste livro em especial há uma tentativa de proceder à evolução história da muralha em geral e de algumas secções em particular desde a sua origem até à Dinastia Ming. No entanto, aconselharia um mapa com indicação das diversas fases da muralha, para dar um maior auxílio visual, já que a longa lista de nomes e secções (principalmente considerando que os locais mudam de nome ao longo dos tempos) torna a sua leitura algo aborrecida.



4. Wang Kun'e (王坤娥) (Comp.), History of Fiction. 小说. China Dabai Kejin Shu Publishing House: 2008, 1ª ed., 176 pág., Col. History of Chinese Civilization, versão bilíngue (chinês-inglês).

Livro consistente com a descrição do anterior: tenta concentrar-se na evolução história daq ficção pura desde as suas origens até ao fim da Dinastia Qing (ou seja, da China Imperial), com especial atenção para as obras marcantes de cada época e as evoluções de estilo, estrutura, temas, descrições, etc. Um livro bastante interessante por explicar em poucos parágrafos como a ficção era encarada ao longo dos tempos e como de um estilo subvalorizado se foi progressivamente libertando e aumentando a aceitação social, até chegarmos ao ponto de coexistir com literatura que diríamos hoje em dia 'cor-de-rosa' (nota minha).

No entanto, um livro que refere aproximadamente 50 obras de ficção chinesa poderia acrescentar uma simples lista (para já não dizer bibliografia) no fim. Apenas como opinião pessoal, tal lista neste livro seria bem mais útil do que a cronologia dinástica que incluem.

Outlaws of the Marsh (Water Margin)

SHI Nai'an (施耐庵), Outlaws of the Marsh (水浒传). 6 vols. Foreign Language Publishing House, Beijing: 2006, 2ª ed., Col. Library of Chinese and English Classics, 3077 pág. Ed.bilíngue (inglês/chinês)

Não vou contar a história deste livro, é demasiado complexa e longa. Mesmo contando que as 3077 páginas narram em duas línguas, serão 1539 páginas por língua. Outlaws of the Marsh inclui-se nos quatro grandes clássicos da literatura clássica chinesa, escritos durantes as dinastias Ming e Qing (as duas últimas dinastias na China). Este livro em particular conta a história de cento e oito heróis com as suas histórias e características. Não concordo, no entanto, com o comentário no livro History of Fiction (recensão a ser escrita posteriormente), o qual indica que “after reading the book one may find that each of the one hundred and eight heroes is unforgettable” (pág. 149). Pelo contrário, por vezes é difícil recordarmo-nos da história de alguém que desapareceu entre vários capítulos, e num total de cem capítulos tal não é tão raro.

Para resumir a história em poucas palavras, os cento e oito heróis são criminosos da dinastia Song que actuam em nome do Céu (chinês). Criminosos que mataram, roubaram, mas de acordo com a história apenas com razão e contra quem merecia. Por causa de oficiais corruptos, viram-se obrigados a viver à margem da lei e a repelir todos os que os tentavam deter, incluindo tropas imperiais. Posteriormente, um perdão imperial lança-os para a capital onde são posteriormente enviados em campanhas de pacificação nas fronteiras. Aqui distinguem-se pelo seu valor e vitórias, mas por causa de ministros corruptos junto do imperador, não obtêm o fim que mereciam: pelo contrário, ou decidem viver em seclusão, ou são eliminados por esses mesmos ministros.

Durante o livro partilhamos as aventuras destes heróis, as suas frustrações e indignações, mas por outro lado há alguns pontos que deixam algumas reservas. Estes serão enumerados de seguida.

1. Lei. Como foi indicado anteriormente, estamos a falar de criminosos, isto é, de indivíduos que praticaram actos à margem da lei. Em muitos dos casos, estavam dispostos a cumprir a pena, mas por causa de inimigos, tais penas eram commumente exageradas ou inclusivamente os carcereiros/ guardas recebiam subornos para que os eliminassem. No entanto, para outros, roubavam ou dominavam zonas sem se deixarem apanhar. São criminosos em todo o sentido do termo. Por exemplo, logo no início do livro o bando junta-se para roubar um trém com prendas de um oficial do governo para o seu sogro. A razão para tal acto é que esse oficial adquiriu as riquezas explorando o povo, mas o objectivo do roubo era o enriquecimento rápido.

2. Face. Sem desenvolver o tópico, alguns dos heróis eram oficiais do governo que falharam nas suas tarefas, e não tinham face para regressarem. Na verdade, temiam mais as represálias, e por isso enveredavam pela carreira do crime.

3. Traições. Um ponto de ainda mais difícil compreensão é o facto de que o livro está coberto de artimanhas e traições. Quando o bando se estava a formar, procuravam talentos por todo o império. No entanto, como um cidadão cumpridor da lei nunca se juntaria a criminosos, estes últimos criavam truques em que tornavam os primeiros criminosos como eles. Tais artimanhas commumente incluíam assassínios, falsas acusações, por vezes morte de familiares, etc.

4. Vingança. À vingança é dada rédea solta. Por vezes quando pretendiam represálias contra alguém que foi injusto no passado, matariam toda a família e criadagem, além de incendiar a casa.

5. Persuasão. Pode ser defeito de tradução, mas a persuasão revela-se na derrota. Isto é, para os militares que eram enviados contra os cento e oito heróis, insultavam-nos quanto podiam, e davam a imagem que nunca mudariam de opinião. Até perderem batalhas suficientes e serem capturados. Aí, ao ver a sua vida poupada, subitamente notavam que na verdade os criminosos é que actuavam correctamente. Hum... não soa a cobardia?

4. Guanxi. Também sem desenvolver o tópico, e com os devidos ajustamentos temporais e espaciais, parece-me actualmente ainda ver uma herança cultural de uma prática que neste livro se mostra tão aberta e exemplificada.

5. Emoções. Mais uma vez pode ser defeito de tradução, mas o personagem principal da história, Song Jiang, líder do bando, chora que nem uma menina. Chorar por perder companheiros na guerra ainda se compreende, mas quando se separa dos amigos, aí já começa a parecer mais um concurso de Miss Universo que um livro bélico...

Aconselha-se este livro para quem tem tempo para ler, tanto pelas aventuras como pela ideia de que dá da cultura chinesa. No entanto, abriu-me a curiosidade para ler mais sobre a moralidade chinesa e atitudes críticas (não marxistas) perante este livro.